domingo, maio 04, 2008

Invasão bárbara

Após concluir "Ensaio sobre a Cegueira", que abrirá o Festival de Cannes em disputa pela Palma de Ouro, Fernando Meirelles afirma à Folha que "a barbárie está instalada" na sociedade e que vê "gente meio cega" ao seu redor

SILVANA ARANTES

DA REPORTAGEM LOCAL

Quando o cineasta Fernando Meirelles decidiu filmar uma versão cinematográfica do livro "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago, em setembro de 2006, imaginou o ator norte-americano Sean Penn no papel do oftalmologista. O personagem do médico é o que tenta conservar valores humanistas, num ambiente onde progride a barbárie, à medida em que uma epidemia de cegueira atinge toda a população, exceto a mulher do médico. Penn leu o roteiro, conversou com o diretor e quis ler também a obra original. No fim, negou o papel. "[Ele] Disse que não saberia por onde começar seu trabalho. Além de não terem nomes, os personagens do filme não têm passado nem história. Para atores que usam isso como método de construção de personagem, fica meio esquisito criar uma pessoa sem saber a sua história. Entendi seu ponto de vista", diz Meirelles. Quase dois anos depois desse diálogo, o Festival de Cannes reaproximará Penn de "Ensaio sobre a Cegueira". O filme de Meirelles, recém-concluído, com Mark Ruffalo no papel do médico, abrirá a 61ª edição do festival, no próximo dia 14 de maio, competindo pela Palma de Ouro. Penn é o presidente do júri que decidirá o vencedor, entre os 22 concorrentes. O longa brasileiro "Linha de Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas, também está na disputa. Para interpretar a "mulher do médico", Meirelles quis a norte-americana Julianne Moore. Ela disse sim. Na entrevista a seguir, o diretor comenta o trabalho da atriz e diz julgar atual a trama do filme. "Diariamente, os limites do que chamamos civilização são rompidos, mas parece que não enxergamos isso. A barbárie está instalada e não vemos."


FOLHA - A protagonista de seu filme é a cegueira ou a mulher do médico, única imune à doença?

FERNANDO MEIRELLES - A cegueira é a protagonista, mas não a cegueira física, e sim a cegueira psicológica, ideológica. Há uma frase do livro que diz: "Não acho que ficamos cegos, acho que somos cegos. Cegos que podem ver, mas não vêem". Diariamente, os limites do que chamamos civilização são rompidos, mas parece que não enxergamos isso. A barbárie está instalada e não vemos. Talvez por estar fazendo este filme, cada vez mais vejo gente meio cega ao meu redor, do padre Adelir [de Carli], que se lançou no ar preso a mil balões por não conseguir enxergar as reais condições que tinha ao redor, às multidões de pessoas com fortes convicções ideológicas que se orgulham de nunca mudarem sua visão do mundo. Esta autocegueira parece ser mais a regra do que a exceção. Há uma boa frase sobre isso no filme, já não sei se está no livro: "Liberdade para os cegos não é um espaço aberto, é um espaço onde os dedos possam tocar as paredes, é confinamento, que significa proteção".


FOLHA - Você comentou no blog do filme que espectadores de sessões-teste rechaçaram com enfática indignação as cenas de estupro, numa reação que você atribuiu, em princípio, ao conservadorismo do público norte-americano. Como avalia a representação da violência e do sexo por Hollywood?

MEIRELLES - Quando vi muitas mulheres saindo no meio da primeira projeção do filme em Toronto [Canadá], durante uma seqüência meio dura, como um reflexo de autodefesa, coloquei a culpa nas mulheres ou na cultura moralista norte-americana. Após alguns minutos, recobrei certo equilíbrio e percebi que o problema não eram elas, mas o filme mesmo. Tínhamos ido mais longe do que precisávamos para expor a idéia. Remontamos o filme, aliviando a tensão da tal seqüência. De qualquer maneira, parece-me que os norte-americanos são mais sensíveis em relação a sexo, mas, ao mesmo tempo, extremamente liberais e arrojados no que se refere à exposição de violência.


FOLHA - Acha legítimo um filme ter o objetivo de chocar o espectador?

MEIRELLES - Meu filho falava "cocô" quando tinha dois anos e vibrava com sua ousadia. O gosto por uma atitude assim, cheia de som e fúria, me parece infantil ou, na melhor das hipóteses, adolescente. Aliás, a coisa mais fácil do mundo é chocar. Abra a internet e procure os verbetes "bestialismo", "incesto", "canibalismo", "escatologia", "pedofilia". A pesquisa está pronta, não há mérito nenhum em bancar o perverso. Acho isso meio xarope.


FOLHA - Ao fazer um filme, até que ponto abre mão de suas escolhas para não afastar o espectador?

MEIRELLES - Minha escolha costuma fazer com que o espectador embarque na história que estou contando. Tenho alguma noção de quem é o espectador com quem quero dialogar. Na televisão, tento incluir mais gente, claro. Em "Cidade de Deus" [2002], tentei fazer um filme acessível também. Acho que neste "Ensaio sobre a Cegueira" a viagem é mais acidentada e sei que muita gente não vai se interessar em embarcar. Mesmo assim, faço o possível para incluir e manter a bordo quem vier. Alguns colegas dizem que tentam apenas agradar a si mesmos quando filmam. Quisera eu me conhecer tão bem assim para saber como agradar a mim mesmo.


FOLHA - Após fazer um filme sobre uma população vítima de uma epidemia que reflete sua própria decadência moral, como se sente diante das reações -da polícia, da imprensa, da população- ao caso Isabella?

MEIRELLES - Impressionou-me a eficiência técnica da polícia, mas toda a exposição e espetacularização do caso pela mídia e o interesse mórbido da audiência me deixa um pouco aflito. Até onde irá este fascínio por "reality shows"? Sou daqueles dinossauros que preferem ketchup a sangue de verdade para me fazer refletir e me colocar em contato com meu lado sombrio. Quando sabemos que o sangue tem plaquetas, linfócitos etc., fica mais difícil manter distanciamento, o que provoca certa imantação mórbida, como acontece com pornografia.


FOLHA - Com seu novo filme, pretende debater que aspecto concreto da vida social ou política?

MEIRELLES - Saramago é bastante irônico toda vez que se refere aos políticos e ao Estado. Os políticos, como mestres do ilusionismo, focam seus esforços em criar aparências antes das soluções. Num mundo onde as imagens desapareceram, as aparências perdem a relevância. Revela-se o que está por baixo.Dentro dessa idéia de sermos reduzidos a instintos básicos, uma possível sinopse para o filme seria: "Uma história sobre a perda e o reencontro da humanidade em cada um de nós".

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